terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Deu-me para a nostalgia...esta é a história do Justino


Monólogo do Justino

Nasceste em Lisboa, no princípio dos anos 40, ia a meio a 2ª Grande Guerra Mundial. Os teus pais, ricos e profundamente religiosos, chamaram-te José, como o pai do menino Jesus, o Salvador. Em tempo de crise social e económica a nível mundial tu e a tua família pareciam ter tudo para serem felizes. Abundavam os bens materiais, as colchas de cetim, as paredes artisticamente pintadas, as belas tapeçarias, os chapéus caros e os empregados solícitos e dedicados. Tinham, de facto, tudo. Tudo, menos a própria felicidade. Entre as quatro paredes cobertas com as belas tapeçarias detestavas ver o teu pai aproximar-se de ti, completamente ébrio, de cinto em riste pronto para te castigar sem qualquer razão. E tu, frágil no teu corpo de seis anos, aceitavas a punição lutando para conter as lágrimas que derramavas quatro a quatro quando voltavas a ficar sozinho no quarto, deitado na tua cama, a pensar porquê, porquê, porquê?

À noite gostavas de dormir com as cortinas abertas para poderes contar as estrelas do céu e, nessas alturas, percebias como, apesar das dores, achavas bonito viver. Só porque à noite havia estrelas no céu para contar. No colégio em que andavas eras um dos melhores alunos, eras o exemplo que os outros pais davam aos seus filhos. “Estás a ver como o José é um menino bem-comportado? Vê lá se ele fala alto ou corre pelos corredores como às vezes fazes. Aquilo é que é um menino de boas famílias.”. Esforçavas-te para ser o melhor em tudo o que fazias e, por isso, ainda te era mais difícil de compreender o porquê das vergastadas que tinhas marcadas nas costas. E começavas a perceber que, com os outros meninos não era assim. Eles não tinham marcas como as que tu tinhas apesar de não serem tão bem-comportados ou terem melhores resultados escolares que tu. Às vezes, quando a sova era maior, os outro meninos ou os professores perguntavam que marcas eram aquelas e tu, porque o teu pai assim mandava, dizias que tinhas caído no quintal ou a brincar com o cão.

Até que um dia, tinhas tu doze ou treze anos, começas a reparar numa menina de longos cabelos ruivos, olhos azuis muito brilhantes como duas gotas de água e vestido usado que vinha todos os dias, de embrulho na mão, trazer o almoço ao senhor que guardava a entrada do colégio. Por lá ficava uma hora até o senhor acabar de comer e depois levava os panos embrulhados debaixo do braço de regresso a casa. E então, quase sem dar por isso, vias-te a desejar que a hora de almoço chegasse depressa para poderes ver novamente a menina ruiva, de olhos azuis e vestido usado sentada nas escadas da porta do colégio à espera que o velhote almoçasse. Passaram semanas e meses, continuaste a ser o melhor aluno do teu colégio e, numa noite, enquanto contavas as estrelas do céu pela janela do teu quarto, escreveste um poema lindo que falava da beleza dos pássaros a voar, do Sol a brilhar e de uns certos longos cabelos ruivos e de uns brilhantes olhos azuis. No dia seguinte, lá estava ela e tu, envergonhado, aproximaste-te e perguntaste-lhe qualquer coisa que já nem te lembras, era sobre o tempo ou sobre um livro qualquer. Ela disse “Olá!” e perguntou como te chamavas mas nessa altura bloqueaste, não foi? Dito agora até parece engraçado mas na altura não foi, pois não Justino? Amachucaste o papel que tinhas na mão e, escarlate de vergonha, entraste novamente no colégio, aos tropeções na escada. Com a atrapalhação nem reparaste no papel que deixaste para trás. A menina apanhou-o do chão, leu-o e, a partir dessa altura também ela passou a desejar que a sua mãe, cozinheira numa casa de gente importante como os Justinos, preparasse depressa o almoço para ela levar ao pai e olhar aquele menino tímido com quem ela falava nessa hora de almoço e que partilhava com ela a sua comida requintada.

O tempo foi passando e a vossa cumplicidade cresceu. Trocavam bilhetinhos todos os dias, escrevias fervorosas cartas de amor em papel perfumado com uma paixão que crescia desmesuradamente. Mas, um dia, os teus pais descobriram um papel sujo onde estava escrita uma das cartas que ela te enviara. O teu pai, curioso, perguntou quem era a jovem menina que despertava em ti tais sentimentos e porque te escrevia ela em papel tão ordinário. Bastou-lhe ouvir que era filha de uma cozinheira para o cinto voar novamente na tua direcção uma, duas, três, quatro vezes, cada vez com mais força, cada vez com mais fúria. Ficaste sem a ver durante seis meses mas a semente da paixão estava lançada e já havia germinado. Passaram a ser mais cuidadosos. Falavam discretamente no colégio, na habitual hora de almoço e quando regressavas da missa, aos Domingos. Lembras-te? Lembras-te daqueles sinais que fazias com o chapéu quando passavas em frente à cozinha onde ela trabalhava? Lembras-te? Aqueles sinais que só vocês conheciam? E lembras-te como ela olhava discretamente e cruzava as mãos sobre o peito como resposta? Ainda te lembras do que é que queriam dizer esses sinais? Calculei que sim. Afinal não é uma palavra fácil de se esquecer.
Tinhas então dezassete anos e já não aguentavas mais. Numa noite como tantas outras, com o céu repleto das estrelas que adoravas contar, resolveste fugir. Agarraste em alguma da tua roupa, em todo o dinheiro que conseguiste enfiar nos bolsos e fugiste de casa, de toda aquela falsidade, da ostentação e das sovas quase diárias. Bateste à porta da cozinha onde ela trabalhava e abriram-te a porta de faca na mão. Ao verem que eras tu, o filho do Sr. Justino, perguntaram gentilmente o que desejavas àquela hora tão tardia. Pediste para falar com ela e, mal apareceu à soleira da porta, puxaste-a por um braço e fugiram ambos.
O dia amanhecia. Apanharam o primeiro autocarro que encontraram cujo destino era uma terra com um nome estranho, que nunca tinham ouvido falar, nem tu que lias tantos livros. Andaram, andaram, andaram, saíram da cidade, percorreram quilómetros e quilómetros de estrada até que o autocarro parou, já o Sol ia alto. Eram os únicos passageiros que tinham ficado até ao fim do percurso. Saíram e, para onde quer que olhassem, só viam planícies douradas a perder de vista. Caminhaste de mão dada com ela até encontrarem uma casa abandonada num monte. Entraram e por lá ficaram. Sentiam-se finalmente livres para viverem o seu grande amor. O dinheiro que trouxeste serviu para arranjar a casa e para manter umas plantações, algo que desse para viverem sem terem que sair do monte, apenas entregues ao que sentiam um pelo outro. E as noites, lembras-te como eram? Nas noites de Verão gostavas de te deitar com ela no meio das searas. E começavas a contar estrelas para ela. Uma estrela, duas estrelas, três estrelas, olha aquela ali tão brilhante, quatro estrelas, cinco estrelas, seis estrelas... Só paravas quando sentias a sua respiração constante, quando a sentias desfalecer no teu peito numa paz que te apaziguava a alma, com os seus longos cabelos ruivos a brilhar sob a luz da Lua. Podias então adormecer. Mas havia noites em que fazias com ela algo mais do que simplesmente contar estrelas. Momentos etéreos e sublimes, de comunhão perfeita. Ias então ser pai, ias ter a oportunidade de provar a ti próprio que eras capaz de ser melhor pai do que o teu tinha sido para ti! Porém, a gravidez tornou-se também motivo de discussão. Ela queria deixar aquele monte isolado e regressar a Lisboa onde, dizia ela, “o menino pode ter uma vida decente”, enquanto que tu não querias. Não querias voltar a esse sítio onde tinhas vivido horrores, onde existia tudo aquilo que te revoltava, o poder do dinheiro, da ambição, toda aquela falsidade. Não querias que o teu filho crescesse nesse ambiente que achavas imundo. O tempo foi passando, a barriga crescia e as discussões sucediam-se, umas a seguir às outras. Mas continuavam a amar-se profundamente, pelo menos tu sentias isso por ela, não era? Até que uma noite, depois de a teres adormecido novamente a contar estrelas, acordas sobressaltado e sentes falta daqueles longos cabelos ruivos sobre o teu peito, aquela respiração doce e constante não estava lá. Chamaste por ela uma, duas, três vezes. Em desespero, correste monte acima, monte abaixo perfurando a escuridão da noite mas ela tinha desaparecido sem deixar sinal, talvez para sempre. A noite e as estrelas que tu tanto adoravas tinham-na deixado fugir e nem sequer te avisaram. Aí revoltaste-te mais uma vez. Perdeste tudo em que acreditavas, a única pessoa que realmente contava para ti tinha-te abandonado, a única pessoa que te prendia à beleza da humanidade largou a corda que te amarrava à vida, à vida que te restava, à vida com que sonhavas. Foi por isso que ficaste assim, não foi Justino? Quiseste apagar de vez o teu passado, mesmo o que poderia ter feito a felicidade da tua vida. E por isso tornaste-te um solitário, descrente nas pessoas, defensor do que ainda é só teu e que nunca mais quiseste partilhar com ninguém, não foi? Até quiseste esquecer o nome que todos, e ela também, te chamavam. Quiseste deixar de ser José e passaste a ser Justino, um homem traído, um homem sem esperança nos outros, um homem que vive só para si, afastado de todos, menos de si mesmo porque não pode fugir das teias da memória, das garras do tempo...

2 comentários:

Anónimo disse...

Lindo!!
sem palavras!...

Bela Isa disse...

Prometi que vinha espreitar... :)
O Justino... gosto dele, mas não gosto da sua solidão. Ele que chicoteie por uma vez o mundo e se torne feliz :)
Muito bom!