Nasceste em Lisboa, no princípio dos anos 40, ia a meio a 2ª Grande Guerra Mundial. Os teus pais, ricos e profundamente religiosos, chamaram-te José, como o pai do menino Jesus, o Salvador. Em tempo de crise social e económica a nível mundial tu e a tua família pareciam ter tudo para serem felizes. Abundavam os bens materiais, as colchas de cetim, as paredes artisticamente pintadas, as belas tapeçarias, os chapéus caros e os empregados solícitos e dedicados. Tinham, de facto, tudo. Tudo, menos a própria felicidade. Entre as quatro paredes cobertas com as belas tapeçarias detestavas ver o teu pai aproximar-se de ti, completamente ébrio, de cinto em riste pronto para te castigar sem qualquer razão. E tu, frágil no teu corpo de seis anos, aceitavas a punição lutando para conter as lágrimas que derramavas quatro a quatro quando voltavas a ficar sozinho no quarto, deitado na tua cama, a pensar porquê, porquê, porquê?
À noite gostavas de dormir com as cortinas abertas para poderes contar as estrelas do céu e, nessas alturas, percebias como, apesar das dores, achavas bonito viver. Só porque à noite havia estrelas no céu para contar. No colégio em que andavas eras um dos melhores alunos, eras o exemplo que os outros pais davam aos seus filhos. “Estás a ver como o José é um menino bem-comportado? Vê lá se ele fala alto ou corre pelos corredores como às vezes fazes. Aquilo é que é um menino de boas famílias.”. Esforçavas-te para ser o melhor em tudo o que fazias e, por isso, ainda te era mais difícil de compreender o porquê das vergastadas que tinhas marcadas nas costas. E começavas a perceber que, com os outros meninos não era assim. Eles não tinham marcas como as que tu tinhas apesar de não serem tão bem-comportados ou terem melhores resultados escolares que tu. Às vezes, quando a sova era maior, os outro meninos ou os professores perguntavam que marcas eram aquelas e tu, porque o teu pai assim mandava, dizias que tinhas caído no quintal ou a brincar com o cão.
Até que um dia, tinhas tu doze ou treze anos, começas a reparar numa menina de longos cabelos ruivos, olhos azuis muito brilhantes como duas gotas de água e vestido usado que vinha todos os dias, de embrulho na mão, trazer o almoço ao senhor que guardava a entrada do colégio. Por lá ficava uma hora até o senhor acabar de comer e depois levava os panos embrulhados debaixo do braço de regresso a casa. E então, quase sem dar por isso, vias-te a desejar que a hora de almoço chegasse depressa para poderes ver novamente a menina ruiva, de olhos azuis e vestido usado sentada nas escadas da porta do colégio à espera que o velhote almoçasse. Passaram semanas e meses, continuaste a ser o melhor aluno do teu colégio e, numa noite, enquanto contavas as estrelas do céu pela janela do teu quarto, escreveste um poema lindo que falava da beleza dos pássaros a voar, do Sol a brilhar e de uns certos longos cabelos ruivos e de uns brilhantes olhos azuis. No dia seguinte, lá estava ela e tu, envergonhado, aproximaste-te e perguntaste-lhe qualquer coisa que já nem te lembras, era sobre o tempo ou sobre um livro qualquer. Ela disse “Olá!” e perguntou como te chamavas mas nessa altura bloqueaste, não foi? Dito agora até parece engraçado mas na altura não foi, pois não Justino? Amachucaste o papel que tinhas na mão e, escarlate de vergonha, entraste novamente no colégio, aos tropeções na escada. Com a atrapalhação nem reparaste no papel que deixaste para trás. A menina apanhou-o do chão, leu-o e, a partir dessa altura também ela passou a desejar que a sua mãe, cozinheira numa casa de gente importante como os Justinos, preparasse depressa o almoço para ela levar ao pai e olhar aquele menino tímido com quem ela falava nessa hora de almoço e que partilhava com ela a sua comida requintada.
O tempo foi passando e a vossa cumplicidade cresceu. Trocavam bilhetinhos todos os dias, escrevias fervorosas cartas de amor em papel perfumado com uma paixão que crescia desmesuradamente. Mas, um dia, os teus pais descobriram um papel sujo onde estava escrita uma das cartas que ela te enviara. O teu pai, curioso, perguntou quem era a jovem menina que despertava em ti tais sentimentos e porque te escrevia ela em papel tão ordinário. Bastou-lhe ouvir que era filha de uma cozinheira para o cinto voar novamente na tua direcção uma, duas, três, quatro vezes, cada vez com mais força, cada vez com mais fúria. Ficaste sem a ver durante seis meses mas a semente da paixão estava lançada e já havia germinado. Passaram a ser mais cuidadosos. Falavam discretamente no colégio, na habitual hora de almoço e quando regressavas da missa, aos Domingos. Lembras-te? Lembras-te daqueles sinais que fazias com o chapéu quando passavas em frente à cozinha onde ela trabalhava? Lembras-te? Aqueles sinais que só vocês conheciam? E lembras-te como ela olhava discretamente e cruzava as mãos sobre o peito como resposta? Ainda te lembras do que é que queriam dizer esses sinais? Calculei que sim. Afinal não é uma palavra fácil de se esquecer.