domingo, 2 de julho de 2006

Pequeno backup literário...

Como hoje me apetece escrever qualquer coisa bem-humorada mas bom humor foi coisa que ficou debaixo do colchão, resolvi recuperar um pequenino texto com que, há mais ou menos 3 anos, concorri a um concurso de contos promovido por uma revista literária. Tentei que tivesse tudo desde simplicidade, coerência, ritmo (se calhar até teve ritmo a mais...), humor e um final surpreendente. Não ganhei nada e, depois de atestar a grande qualidade dos textos vencedores, percebi facilmente porquê...Mas ficou a intenção...:)
Ora aqui vai...
PODIA ACONTECER A QUALQUER UM...

Amanhã já não me engano...
Acordei com o Sol a espreitar pelas frestas dos estores e com o som do despertador a tinir nos meus ouvidos. Virei-me para o lado contrário e tentei ignorá-lo abraçando a minha almofada com força suficiente para a esganar, se ela respirasse. Com um murro, calei o despertador, talvez para sempre e, depois de me desenvencilhar dos lençóis, levantei-me de repelão na esperança de que assim pudesse despertar mais rapidamente. Sentei-me logo a seguir, depois de ver os móveis do meu quarto a rodopiar a uma velocidade estonteante e assim fiquei, de olhos fechados, até recuperar o equilíbrio. Quando reabri o olho direito, vi as horas no meu relógio de pulso e fiquei verde de terror: tinha adormecido sentado!!! Estou meia hora atrasado!!! Sem tempo para pensar duas vezes, ergui-me e corri aos ziguezagues para a casa de banho, superando as tonturas e despindo o pijama à medida que, aos tropeções, me aproximava da banheira. Saltei lá para dentro, abri a torneira de água quente e gelei até aos ossos com o jacto de água fria que jorrou do chuveiro. Sem tempo para sair e ligar o esquentador na cozinha, tomei o banho que a minha pré-hipotermia permitiu, fechei a torneira a tiritar e saltei para o tapete ao mesmo tempo que, com os cabelos encharcados à frente dos olhos, tacteava o varão onde deveria estar o toalhão de banho. Abanei a cabeça à cão e, entre as melenas, percebi que não havia ali toalhão nenhum. Tinha ficado no estendal, no dia anterior. Sem outra opção, e com o tempo a passar, resolvi pôr pernas a caminho e regressar ao quarto para me vestir, não sem antes tropeçar na camisola do pijama que tinha atirado para o chão a caminho do banho.
E agora, o que vestir? Com a mão esquerda abri a gaveta da roupa interior à medida que, com a mão direita enrolada no lençol de cima, enxugava a cabeça. Visto uns slips e, com a visão já restabelecida, abro a segunda gaveta e esgravato naquela confusão de meias à procura de duas que completem um par. Consegui!! Vou agora até ao armário, tiro um cabide que arremesso para cima da cama, puxo por umas calças e vêm as outras todas atrás. Paciência, logo à noite arrumo. Calças vestidas, volto-me de novo para o guarda-fatos, tento tirar uma das muitas camisas sobrepostas no mesmo cabide sem o retirar do varão, puxo com mais força e o varão parte-se ficando a roupa toda enrodilhada dentro do armário. Visto a camisa e fecho a porta do armário quase a pontapé empurrando a roupa toda lá para dentro, à laia de varrer a porcaria para debaixo do tapete. Longe da vista, longe do coração. Nada mais apropriado. Dirigi-me em passo apressado para a cozinha e, ao passar em frente ao móvel espelhado do hall, fico petrificado ao perceber que, em cinco dias de férias, não tinha feito a barba uma única vez. Corro para a casa de banho depois de me ter embrulhado novamente com a camisola do pijama abandonada no chão, molho a cara, espalho o creme de barbear em tal quantidade que uma bola de espuma cai e só pára na minha camisa acabadinha de vestir. Frustrado, começo a zurzir a minha face com a lâmina com uma habilidade tal que me permitiu escapar com um único corte junto à orelha. Saio da casa de banho a correr, atrapalho-me de novo com a malfadada camisola e vou ao quarto trocar de camisa o que tento fazer só com um braço pois o outro está ocupado a segurar o algodão sobre o corte que ainda brota algum sangue.
Rumo à cozinha através do hall (não, desta vez não tropecei na camisola...), enfio duas fatias de pão de forma na torradeira e vou ao frigorífico buscar um pacote de leite de um litro, ainda por abrir. Sem tempo a perder tento abri-lo à mão pelo picotado, coisa que faço frequentemente quando bebo o meu copo de leite descansadamente, antes de me ir deitar. Mas este não queria ceder. Estava eu nesta luta com o pacote de leite quando começo a sentir um leve cheiro a queimado. Assustado, olho para a minha torradeira, por esta altura envolta numa nuvem de fumo, carrego no botão e por pouco não sou atingido por dois tições que saltam abruptamente das entranhas do electrodoméstico. Agito as mãos à frente da cara de modo a dissipar um pouco o fumo, coloco mais duas fatias de pão dentro da torradeira e dou início ao segundo round contra a bendita embalagem de leite. Agora é mais que um desafio, é uma questão de honra! Tento, tento e volto a tentar, dobro o picotado para um lado e para o outro, espeto-lhe as unhas e os dentes e não vejo maneira de o abrir. Antes que também se queimem, retiro as fatias de pão da torradeira e, rendido ao poderio da embalagem de cartão, vou cabisbaixo buscar a tesoura com a qual facilmente venço o monstro. Encho o copo de leite (e a mesa também...), barro as torradas com manteiga e degluto o pequeno-almoço mais rápido que a minha própria sombra. OK, está quase....
Vou à sapateira buscar os meus sapatos e, pelo caminho, sou derrubado outra vez pela temível camisola diabolicamente inerte no meio do chão. Depois de tantos dias sem os usar precisam de uma boa engraxadela. Agarro na graxa e na escova e ponho os sapatos a brilhar em dois minutos demorando outros tantos na casa de banho a esfregar os meus dedos mascarrados com a pedra-pomes.
Pego na mala à entrada da cozinha, abro-a e vejo se falta alguma coisa. Está cheia de papéis amarrotados por isso não deve faltar nada e, com perto de uma hora de atraso, não tenho tempo para confirmar. Finalmente, posso sair para ir trabalhar!
Meto a chave ao bolso, bato com a porta e voo escada abaixo e rua abaixo até à paragem do autocarro. Agora é só esperar e começar a pensar numa boa desculpa para justificar mais este atraso. E o autocarro que nunca mais vem! Começo a caminhar de um lado para o outro como um animal enjaulado, metendo no bolso a mão que não está a segurar a mala para não esmurrar aquela cara bonita do anúncio do desodorizante que parece olhar-me com um ar de gozo. Vou apertando furiosamente o forro do bolso até que...o passe!!! Onde é que ele está!? Começo a escarafunchar os bolsos todos desenfreadamente, numa dança frenética que, só não pôs toda a gente a olhar para mim porque não havia ninguém na paragem nem nas proximidades. Com o espectro do desemprego a pairar sobre a minha cabeça, regressei a casa o mais rápido que consegui, abri a porta, tropecei outra vez na camisola, agarrei no passe que estava sobre a sapateira e voltei à paragem, tão deserta como antes. Esperei, esperei e o autocarro parecia demorar uma eternidade até que vejo o meu vizinho dobrar a esquina ao volante do seu automóvel verde metalizado, muito bem acompanhado pela sua família, todos com ar de quem ia aproveitar o belo dia de praia que se adivinhava. Sempre afável, parou ao pé de mim e saudou:
- Bom dia, vizinho! Então agora também trabalha aos feriados?
Acho que nem lhe respondi. Voltei para casa, com um misto de raiva e alívio na minha alma, vesti as calças do pijama, a quase irreconhecível camisola e enrolei-me nos lençóis molhados para dormir o dia inteiro. Acordei constipado...

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